segunda-feira, 30 de março de 2015

O governo respira: quer renascer?

Politizar as escolhas do desenvolvimento significa estender à sociedade a tarefa de ir além do voto, para se engajar na construção do destino votado nas urnas...

Saul Leblon                       

José Cruz/Agência Brasil
A sensação de que o governo Dilma respira sem arfar, pela primeira vez desde a posse, não é miragem, mas tampouco pode ser creditada à percepção de um ambiente econômico mais favorável.
 
Perto de completar cem dias do novo mandato, o país arde nessa frente em labaredas de incerteza e regressão.
 
A estagnação do PIB em 2014 nem é o pior sintoma, a se considerar o panorama mundial anêmico e volátil.
 
O mais grave é a precificação de um plano inclinado diuturnamente anunciado como inevitável e doloroso.
 
Em jogral uníssono, a emissão conservadora  tange o gado para o matadouro e assegura: não há nada melhor a fazer para salvar a vida do que a eutanásia.
 
O ministro da economia é uma das vozes mais entusiasmadas do coral das carpideiras.
 
‘Quanto mais rápido, melhor’, garante à fila hesitante.
 
Empresas, famílias e investidores se conformam assim à fatalidade materializando o diabo a convite do enxofre.
 
O salve-se quem puder é um aviso geral do patrocinador, mas contempla interesses específicos.
 
O ajuste intempestivo das tarifas públicas, por exemplo, joga a inflação para 8% ao ano: legitima a demanda rentista por uma ração adicional dos juros.
 
O desemprego –a ameaça dele em marcha--  acua a reivindicação por aumento real de salário.
 
A desvalorização cambial em si é positiva para a manufatura, mas associada a um ambiente de retração do investimento privado e público – para o qual é decisiva paralisia criada pela Lava Jato--  atrai o capital estrangeiro que não adiciona capacidade produtiva ao país. Apenas vem sugar direitos de remessa sobre o parque já existente.   
 
Tudo isso já está acontecendo.
 
Sem que a maioria das medidas cogitadas pelo centurião Joaquim Levy tenham entrado em operação.
 
É assim que o mercado opera uma nação quando falta o contraponto do Estado.
 
Joaquim Levy monopoliza a voz de um governo que assiste calado ao seu desmonte; a mão pesada dos juros estreita qualquer horizonte de futuro; martelete midiático repica que o pior está por vir.
 
A força material das expectativas faz o resto.
 
Quem vai investir um tijolo no Brasil nesse momento?
 
É essa lógica que inocula o sentimento de desamparo na vida de uma nação.
 
Daí o aparente paradoxo de um governo que, pela primeira vez desde a posse, respira sem arfar.
 
Na verdade, não há contradição.
 
O que há, de fato, é a evidência pedagógica de que o monólogo conservador  -- na política, como na economia--  passou a fazer água mesmo sem que o governo se esforce para isso.
 
Sob a névoa espessa e deliberada da mídia é preciso um trabalho de costura e pinça, mas os sinais se avolumam.
 
Depoimentos dos dois principais delatores da Lava Jato –Alberto Yousseff e Paulo Roberto Costa—  comprovam que o buraco da corrupção é mais amplo do que sugere o foco da conveniência conservadora.
 
Gravações só agora liberadas incriminam enfaticamente Aécio Neves e família em comissionamentos mensais de US$ 100 mil em Furnas, de 1997 a 2001; mas também o presidente do PSDB, falecido senador Sergio Guerra, na drenagem de R$ 10 milhões da Petrobrás para abortar a CPI que investigaria a estatal, já em 2009.
 
Não só.
 
Nas contas generosas do HSBC da Suíça, o vice-presidente do PSDB, Márcio Fortes, ex-caixa de campanha de Serra e FHC, notificado pela emissão de notas frias nessa função, abriga a bagatela de US$2,4 milhões não declarados à Receita.
 
Não, não é um ponto fora da curva, como agrada a FHC dizer sobre as maracutaias de Pedro Barusco e do ‘clube dos nove’, na Petrobras, desde 1997.  
 
É maior que isso. É a rotina da supremacia do mercado sobre as instituições e a democracia.
 
As maiores casas bancárias do país --Safra, Bradesco etc--  ao lado de algumas das mais prestigiadas empresas, como a Gerdau, ícones da eficiência privada, foram flagradas em uma nova operação da PF, a Zelotes.
 
Estima-se que entre acertos e falcatruas tenham sangrado tributos da ordem de R$ 19 bilhões ao fisco.
 
O valor equivale a 1/3 do arrocho fiscal em marcha; supera em R$ 1 bilhão a fatia diretamente predestinada aos ombros dos trabalhadores.
 
Não é pouco.
 
E o muito não se refere apenas ao numerário subtraído às políticas públicas.
 
Estamos falando de disputa pela hegemonia política na transição de ciclo de desenvolvimento vivida pelo país --um  ingrediente que o governo Dilma esqueceu em alguma pasta na campanha de outubro de 2014.
 
O escândalo da Operação Zelotes oferece-lhe a chance de resgatar a iniciativa nessa frente assumindo a bandeira da taxação adequada às grandes fortunas e ao capital financeiro.
 
Ou seja, contrapondo-se, em vez de se render, a esses que fuzilam o déficit público, exigem cortes da ‘gastança social’, demonizam o ‘custo Brasil’, ao mesmo tempo em que sangram a receita em golpes cinematográficos.
 
O salvacionismo conservador –aquele que vai redimir todos os males do Brasil destruindo o PT, o salário mínimo e a Petrobras-- enfrenta assim a sua hora do espelho.
 
A oportunidade de sacudir o jogo político está dada.
 
Mas para isso o governo precisa sair da catatonia e redescobrir a política e o seu interlocutor disposto a ouvi-lo: os movimentos sociais, as famílias assalariadas e não apenas os mercados.
 
O que falta para ir além do monólogo levyano com as tesourarias?
 
Falta recuperar o elo perdido entre a aguerrida vitória em 26 de outubro em clima de virada progressista, e o anúncio oficial do ministro da Fazenda, um mês depois, em 27 de novembro.
 
O que aconteceu nesse buraco negro da transição ainda é um mistério, mas o fato é que engessou o governo e condenou a sua base à prostração.
 
Pior que isso: disseminou a percepção letal em política de que para as prioridades do novo mandato petista o apoio ou não dos movimentos sociais é irrelevante.
 
Uma liderança política que inspira tal percepção em seu alicerce histórico coloca a sua sobrevivência nas mãos da indulgência adversária.
 
Não haverá indulgência, como já deu para perceber.
 
Delineiam-se, assim, dois caminhos na travessia para um novo ciclo de desenvolvimento.
 
Um, implica a repactuação ampla das linhas de passagem para uma nova matriz de crescimento ordenada pela justiça social.
 
Não é isenta de algum sacrifício planejado e negociado, alerte-se.
 
A outra, simplifica a tarefa, terceirizando-a à ‘racionalidade’ dos livres mercados. Como vem sendo feito em uma Europa em carne viva, há seis anos submetida à lixadeira neoliberal.
 
Com o resultados sabidos.
 
A escolha conservadora dispensa o penoso trabalho de coordenação política da economia, associado à mediação dos conflitos inerentes às escolhas do desenvolvimento.
 
No fundo, torna ornamental a bandeira da reforma política na medida em que prescinde da maior participação social. Por razões análogas protela por irrelevante a regulação do sistema de comunicação que deveria ser mais poroso à expressão dos diferentes interesses sociais.  
 
Por algum motivo, no intervalo entre a vitória na urna e a formação do ministério, a Presidenta Dilma e as lideranças do PT optaram por trocar tudo isso a favor da terceirização da travessia a um centurião dos mercados.
 
O alívio desfrutado nesse momento decorre não dos acertos propiciados por essa escolha, mas dos reveses políticos enfrentados pelos interesses que dela se beneficiam diretamente.
 
De uma forma ou de outra o Brasil vai passar pelas dores do parto intrínsecas à reordenação do seu desenvolvimento.
 
É uma repactuação incontornável no horizonte da nação.
 
A escolha do método condiciona a meta.
 
A disjuntiva é reordenar a economia em negociação permanente com os grandes contingentes populares que ingressaram no mercado e na cidadania nos últimos doze anos.
 
Ou contra eles.
 
Não há terceira escolha.
 
A depender do método abraçado, conquistas e riquezas promissoras podem florescer ou regredir; tornarem-se um bem socialmente compartilhado, ou o combustível da fogueira da desigualdade e da exclusão.
 
Não é retórica.
 
A politização das escolhas do desenvolvimento significa estender à sociedade de fato, a tarefa de ir além do voto, para se engajar na construção efetiva do destino sufragado nas urnas. Ou este não se consumará.
 
Foi esse princípio que se perdeu nos 30 dias entre a vitória em 26 de outubro e a escolha do método associado a Joaquim Levy em 27 de novembro.
 
Passados três meses, o governo respira sem arfar. Tem a chance de reavaliar, não a necessidade dos ajustes, ou de parte deles, mas o método. E a coerência com os fins para os quais foi mandatado nas urnas.
 

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