Choque de lodo:
o mar de lama
do PSDB
Saul Leblon
O depoimento do diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, nesta 3ª feira, na Assembleia Legislativa de São Paulo, caiu como uma bomba na reta final da campanha presidencial de 2014.
Ele disse aquilo que o PSDB se recusa a admitir: restam apenas 200 bilhões de litros do volume morto do sistema Cantareira, que provê boa parte da água consumida na cidade.
Outros 300 bilhões/l de um total de 500 bi/l já foram acionados.
Mas o pior de tudo: a derradeira reserva de água da cidade encontra-se disponível na forma de lodo.
Dele terá que ser separada para acudir a sede paulistana caso não chova o suficiente no próximo verão.
Ainda que isso ocorra, as chances de São Paulo ficar à mercê do lodo no inverno de 2015 são significativas.
Corta para a campanha eleitoral de Aécio Neves em que o estandarte da eficiência tucana é martelado diuturnamente como um tridente contra aquilo que se acusa de obras e planos nunca realizados por culpa da (Aécio enche a boca e escande as sílabas) ‘má go-ver-nan-ça’.
Corta de volta para um fundo de represa com 200 bilhões de litros de lodo.
Essa é a retribuição que o PSDB prepara para o colégio eleitoral em que seu candidato Aécio Neves teve a mais expressiva votação no primeiro turno da disputa de 2014.
Atribuir a ingratidão a São Pedro é um pedaço da verdade, que vale tanto mais para a inflação, por exemplo, ‘acima da meta, segundo acusa o salvacionismo conservador.
Num sugestivo contorcionismo eleitoral, seu candidato minimiza o impacto da seca no custo dos alimentos, ao mesmo tempo em que apela à meteorologia para abonar o colapso em marcha em São Paulo.
Ou isso ou aquilo?
A rigor muito mais aquilo.
Estocar comida, que não grãos, caso do vilão tomate, por exemplo, está longe de ser uma opção exequível em larga escala no enfrentamento de uma seca. Mas estocar água e planejar dutos interligados a mananciais alternativos, calculados para enfrentar situações limite, mesmo que de ocorrência secular, é uma obrigação primária de quem tem a responsabilidade pelo suprimento de grandes concentrações urbanas.
O custo de não fazê-lo é o caos.
Com as consequências imprevisíveis que agora assombram o horizonte dos cerca de 20 milhões de moradores da Grande São Paulo.
Não por acaso, Nova Iorque e o seu entorno, com uma população bem inferior, de nove milhões de habitantes, nunca parou de redimensionar a rede de abastecimento de água, movida por uma regra básica de gestão na área: expansão acima e à frente do crescimento populacional.
Tubulações estendidas desde as montanhas de Catskill, situadas a cerca de 200 kms e 1200 m de altitude oferecem ao novaiorquino água pura, dispensada de tratamento e acessível direto da torneira.
Terras e mananciais distantes são periodicamente adquiridos pelos poderes públicos para garantir a qualidade e novas fontes de reforço da oferta.
O sistema de abastecimento de Nova York reúne três grandes reservatórios que captam bacias hidrográficas preservadas em uma área de quase 2.000 km2.
A adutora original foi inaugurada em 1890; em 1916 começou a funcionar outro ramal a leste da cidade; em 1945 foi concluída a obra de captação a oeste, que garante 50% do consumo atual.
Mesmo com folga na oferta e a excelente qualidade oferecida, um novo braço de 97 kms de extensão está sendo construído há 20 anos.
Para reforçar o abastecimento e prevenir colapsos em áreas de expansão prevista da metrópole.
Em 1993 foi concluída a primeira fase desse novo plano.
Em 1998 mais um trecho ficou pronto.
Em 2020, entra em operação um terceiro ramal em obras desde o final dos anos 90.Seu objetivo é dar maior pressão ao conjunto do sistema e servir como opção aos ramais de Delaware e Catskill, que estão longe de secar.
Uma quarta galeria percorrerá mais 14 kms para se superpor ao abastecimento atual do Bronx e Queens.
Tudo isso destoa de forma superlativa da esférica omissão registrada em duas décadas ininterruptas de gestão do PSDB no Estado de São Paulo, objeto de crítica até de um relatório da ONU, contestado exclamativamente pelo governador reeleito, Geraldo Alckmin.
Se em vez do mantra do choque de gestão, os sucessivos governos de Covas, Ackmin, Serra e Alckmin tivessem reconhecido o papel do planejamento público, São Paulo hoje não estaria na iminência de beber lodo.
O Brasil todo desidrata sob o maçarico de um evento climático extremo. Mas desde os alertas ambientais dos anos 90 (a Rio 92, como indica o nome, aconteceu no Brasil há 22 anos) essa é uma probabilidade que deveria estar no monitor estratégico de governantes esclarecidos.
Definitivamente não se inclui nessa categoria o tucanato brasileiro que em 2001 já havia propiciado ao país um apagão de energia elétrica pela falta de obras e renúncia deliberada ao planejamento público. Os mercados cuidariam disso com mais eficiência e menor preço.
Ademais de imprevidente, o PSDB desta vez mostrou-se mefistofelicamente oportunista na mitigação dos seus próprios erros.
Ou seja, preferiu comprometer o abastecimento futuro de 20 milhões de pessoas, a adotar um racionamento que colocaria em risco o seu quinto mandato em São Paulo.
Não conseguiria concluir a travessa sem a cumplicidade da mídia conservadora que, mais uma vez, dispensou a um descalabro tucano uma cobertura sóbria o suficiente para fingir isenção, sem colocar em risco o continuísmo no estado.
É o roteiro pronto de um filme de Costa Gavras: as interações entre o poder, a mídia, o alarme ambiental e o colapso no abastecimento de água em uma das maiores manchas urbanas do planeta.
Tudo sincronizado pelo cronômetro eleitoral da direita.
O PSDB que hoje simula chiliques com o que acusa de ‘uso político da água’, preferiu ao longo das últimas duas décadas privatizar a Sabesp, vender suas ações nas bolsas dos EUA e priorizar o pagamento de dividendos a investir em novos manaciais.
Mais um subtexto para o filme de Costa Gavras: a captura dos serviços essenciais pela lógica do capital financeiro.
Enquanto coloca em risco o abastecimento de 20 milhões de pessoas, revelando-se uma ameaça à população, a Sabesp foi eleita uma das empresas de maior valorização na bolsa de Nova Iorque.
Não sem motivo: destina ¼ de seu lucro à distribuição de dividendos à Internacional dos Acionistas, para tomar emprestado uma alegoria do governador Tarso Genro.
Como em um sistema hidráulico, o dinheiro que deveria financiar a expansão do abastecimento, vazou no ralo da captura financeira.
“Como a reserva fica no fundo, se a crise se acentuar, não haverá outra alternativa a não ser ir no lodo e tirar essa água”, confirmou o diretor presidente da agência nacional, no debate “A falta de água em São Paulo”, realizada na ALESP.
As chances de uma chuva redentora que evite o indigesto desfecho são reduzidas, segundo os serviços de meteorologia.
Mesmo que a pluviometria neste verão fique em 70% da média para a estação, o sistema Cantareira –segundo os cálculos da ANA– ingressará no segundo trimestre de 2015 praticamente com 5% de estoque (hoje está com 3,2%).
Ou seja chegará no início da estação seca de 2015 com a metade da reserva que dispunha em abril deste ano; e muito perto da marca desesperadora vivida agora, na antessala das chuvas de verão.
O lodo que espreita as goelas paulistanas não pode ser visto como uma fatalidade.
Dois anos é o tempo médio calculado pelos especialistas para a realização de obras que poderiam tirar São Paulo da lógica do lodo. Portanto, se ao longo dos 20 anos de reinado tucano em São Paulo, o PSDB de FH e Aécio Neves, tivesse dedicado 10% do tempo a planejar a provisão de água, nada disso estaria acontecendo.
Infelizmente, deu-se o oposto. De 1980 para cá, a população de São Paulo mais que dobrou. A oferta se manteve a mesma com avanços pontuais.
O choque de gestão tucano preferiu se concentrar em mananciais de maior liquidez, digamos assim.
Entre eles, compartilhar os frutos das licitações do metrô de SP com fornecedores de trens e equipamentos. A lambança comprovada e documentada sugestivamente pela polícia suíça, até agora não gerou nenhum abate de monta no poleiro dos bicos longos.
‘Todos soltos’, como diz a presidenta Dilma.
Lubrificada pelo jeito tucano de licitar, a rede metroviária de São Paulo, embora imune a desequilíbrios climáticos, de certa forma padece da mesma incúria que hoje ameaça as caixas d’agua dos paulistanos.
O salvacionismo tucano em São Paulo não conseguiu fazer mais que 1,9 km de metrô em média por ano, reunindo assim uma rede inferior a 80 kms, a menor entre as grandes capitais do mundo.
A da cidade do México, que começou a ser construída junto com a de São Paulo, tem 210 kms.
O planejamento público que a ortodoxia abomina, ao lado do mercado interno de massa que seus colunistas desdenham, representam, na verdade, as duas grandes turbinas capazes de afrontar o contágio da estagnação mundial no Brasil.
Tudo isso tem sido solenemente ignorado, quando não demonizado, pelo salvacionismo conservador nesta campanha presidencial.
O mito da gestão tucana é o que de mais reluzente o discurso de Aécio Neves tem a esgrimir para afrontar o que caracteriza como sendo um Brasil aos cacos, após 12 anos de governo do PT.
As ironias da história podem ser demolidoras nessa reta final de campanha.
Não deixa de ser potencialmente devastador que quem acusa o PT de jogar o país num mar de lama, agora só tenha 200 bilhões de litros de lodo a oferecer à população de SP para matar a sede.
É essa a garantia de abastecimento de água na capital de um estado onde o festejado choque de gestão está no poder há 20 anos. Ininterruptos.
O legado recomenda uma recidiva da receita para todo o Brasil?
Com a palavra o discernimento popular.
Bom voto.
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