terça-feira, 7 de abril de 2015

A grande lambança e o sono dos justos                                    

Para a elite brasileira, a Constituição Cidadã de 1988 é mais uma ameaça 'bolivariana'. Sua pátria é a liquidez em dólar, a sonegação fiscal e o Estado Mínimo...

Saul Leblon                

Mídia Ninja
Na semana seguinte à vitória da Presidenta Dilma nas eleições de 26 de outubro de 2014 endinheirados  intensificaram tratativas para mandar parte de sua riqueza para fora do país.
 
Dez dias após o pleito, o jornal Valor Econômico, na edição de 05/11/2014, publicava uma reportagem com o seguinte título:  ‘Eleição impulsionou interesse em enviar dinheiro para fora’.
 
O texto informava que 24 horas após o resultado das urnas, o senhor Octavio Cardoso, vice-presidente da consultoria Westchester Financial Group,  “encontrou 80 e-mails de brasileiros em vez dos 2 ou 3 costumeiramente depositados no seu correio eletrônico.
 
Da tarimbada ‘praça financeira’ de Boca Raton, na Flórida, Cardoso respondeu à pergunta que donos de grandes fortunas disparavam no calor da quarta derrota tucana no Brasil:
 
‘Como mandar recursos para fora do país?’
 
Não era uma curiosidade diletante.
 
No mesmo dia, outra ‘consultoria tributária’, a Drummond, segundo o mesmo jornal, receberia em seus escritórios em Nova York, Miami, Boston e São Paulo 30 e-mails e ligações com o mesmo tema, ‘bem acima dos 5 ou 6 que costuma receber diariamente’, observa o texto do Valor.
 
A reportagem ouviu quatro gestores de fortunas de grandes instituições financeiras, três escritórios de direito e duas consultorias especializadas no mercado internacional.
 
De todas, colheu relatos semelhantes.
 
Os fundos que investem recursos no exterior  não estavam  dando conta de atender  à demanda dos nacionais.
 
Sob sua guarda estão US$ 59 bilhões aplicados lá fora. Não é muito: a ‘indústria’ de fundos aqui reúne uns US$ 500 bi na ciranda do circuito rentista.
 
A explicação para o congestionamento dos e-mails, porém, é sugestiva dos tempos em curso: os detentores da riqueza querem garantir que  ‘seu portfólio não tenha qualquer vínculo com o Brasil’.
 
Não se trata de fuga de capital estrangeiro, que continua a frequentar o banquete das  taxas de juros mais altas do planeta.
 
São os nacionais que se comportam como estrangeiros.
 
Vinte e quatro horas após a vitória de Dilma eles reafirmavam a pertinência  da máxima segundo a qual, na era da livre mobilidade dos capitais, todo capital se comporta como capital estrangeiro.
 
A pátria dessa turma é a liquidez --em dólar, de preferência.
 
Sua capital: o HSBC, da Suíça, ou assemelhados.
 
A sonegação fiscal, o corolário de seu fervor no Estado mínimo.
 
A prioridade:  livrar o patrimônio das amarras  legais, políticas ou territoriais que possam sujeita-lo  a laços de solidariedade fiscal impostos pela encruzilhada do desenvolvimento brasileiro.
 
Pagar uma alíquota maior para se ter um país melhor?
 
Essa é o tipo da correlação estranha ao portfólio de 99% dos endinheirados.
 
O lugar que a Constituição Cidadã de 1988 ocupa nesse universo de valores é a coluna das ameaças ‘bolivarianas’.
 
‘O temor de mudanças repentinas de regras para investimento, da imposição de limites para converter moeda e da tributação de grandes fortunas estão entre os argumentos desses donos de patrimônios ávidos por informações sobre remessa de recursos’, diz o texto compreensivo do Valor.
 
Apenas uma parte ínfima do aluvião que se retira à francesa é informada à Receita.
 
São robustos os indícios de uma elite requintada na arte da interação entre caixa dois, sonegação em conluio com franjas amigáveis do Estado e remessas ilícitas.
 
O total de depósitos no exterior informados oficialmente  à Receita brasileira é de US$ 25 bilhões (excluindo-se os US$ 59  bi em aplicações registradas em fundos).
 
Apenas na lista suspeita do  HSBC suíço, porém, existiriam uns US$ 7 bilhões de titulares brasileiros, o equivalente a quase 30% do volume informado à receita.
 
Mesmo que parte disso seja declarada, é forçoso lembrar que o HSBC  talvez seja apenas um boi de piranha.
 
O rebanho dos abrigos do dinheiro frio é muito maior.
 
Pesquisas da The Price of Offshore Revisited, coordenados pelo ex-economista-chefe da McKinsey, James Henry, revelam que os brasileiros muito ricos possuíam, até 2010, cerca de US$ 520 bilhões  em paraísos fiscais.
 
O montante garante aos nacionais o galardão da 4ª maior fortuna do planeta blindada a salvo das interferências do ‘intervencionismo’. Sendo o Brasil a oitava economia do planeta, tem-se aí a evidência do sofisticado estado das artes da gatunagem fiscal entre aqueles que alugam terraços na Paulista para engrossar a voz das ruas contra a corrupção do PT.
 
Essa é a escala da grande ladroagem diante da qual diria o bardo: cesse tudo quanto a antiga Musa canta que outro valor mais alto se alevanta’.
 
O escândalo da Petrobrás, por exemplo.
 
Econômica e moralmente inaceitável, ostenta escala modesta perto da hemorragia fluvial que irriga os canais da sonegação e das remessas de caixa dois ao exterior.
 
Boa pergunta: como esse dinheiro chega lá?
 
Não chegaria sem a inestimável colaboração de bancos e instituições do mercado cujos chefes de 'análise econômica' inundam os jornais com libelos contra o 'desequilíbrio fiscal' decorrente da irresponsável ‘ gastança do lulopopulismo’.
 
A tentativa de circunscrever o caso HSBC a um quisto sebáceo em uma epiderme de cetim sofreu rude golpe com a emergência da nova operação da PF, a Zelotes.
 
Seria preciso que  a revista The Economist, uma espécie de Moisés da religião neoliberal, se interessasse pelo tema, porém, para que se pudesse ter a superlativa dimensão do que está em jogo desta vez.
A Zelotes não envolve ‘apenas’ os R$ 19 bilhões em sonegação potencial revelados timidamente  pela mídia muito ocupada em jatear o imaginário nacional com falcatruas mais convenientes.
 
A Economist deu ao buraco a sua real envergadura e descreveu os dentes de uma parceria público privada de sucesso inegável.
 
Centenas de bilhões de reais sonegados à Receita são arbitrados por uma instância de apelação fiscal (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais –Carf) , cujo colegiado é composto em 50% por representantes indicados pelas entidades de classe empresariais.
 
Pasmem.
 
Nessa caixa de afanação composta de uma dúzia de senhores de boas maneiras congratulam-se a ladroagem fiscal e a gatunagem profissional.
 
Graças ao zelo da  Economist  sabemos agora que: ‘... So, apparently, are a handful of multinationals. There is also much speculation that the dimensions of the scandal will grow: CARF has 105,000 cases pending, with a total value of 520 billion reais’.
 
Ou seja, existe uma fila de 105 mil casos esperando a vez para  negociar dívidas tributárias com um exíguo e blindado conselho, uma espécie de hímen complacente do Estado, que recebeu  R$ 50 milhões do impoluto paladino da eficiência privada, Jorge Gerdau Johannpeter, para transformar  uma dívida fiscal de R$ 4 bilhões em fumaça; recebeu R$ 28 milhões da família Safra, dona do banco do mesmo nome, para fazer sumir um processo de sonegação e multas de mais de R$ 700 milhões; R$ 15 milhões do grupo gaúcho de comunicação RBS, associado da Globo, para dar um chá de pirimpimpim em débitos da ordem de R$ 155 milhões com o fisco.
 
Assim por diante.
 
Os valores e o mecanismo que favorece afanosas práticas excedem exponencialmente à escala do mensalão e da Lava Jato juntos, sem merecer no entanto a mesma determinação purgativa da mídia 'isenta'.
 
Nenhum pedido de CPI foi registrado até agora para ‘devassar’ as ligações entre os membros do Carf, as entidades empresariais, os sonegadores, suas relações no mundo político e o clássico ‘quem indicou quem’, desdobrável em variações, tais como:  ‘quem é amigo de quem’, ‘quem tem negócios com o filho de quem’ , ‘quem é o advogado de quem’ etc etc etc
 
Editoriais aguerridos pedindo cabeças?
 
Nem sinal.
 
O rapaz do jornal Nacional, petizes da Folha e assemelhados da Abril, enfim, o pessoal do tanquinho de areia da moralidade conveniente?
 
Necas de pitibiriba.
 
Há algo aí que não os inspira a brincar de Savonarola tropical.
 
A independência sabida dos nossos bravos jornalistas de economia, arautos da superior eficiência do setor privado em alocar recursos ao menor custo, tampouco se apetece do tema.
 
Onde os gráficos criativos da Folha para orientar a ira cívica da Nação diante do oceânico fluxo que sai das entranhas da economia  e nunca entra na coleta dos fundos públicos?  E os comparativos daquilo que a montanha desviada poderia  erigir em escolas, hospitais, quilômetros de metrô, saneamento básico?
 
Ou de modo mais atual: quantas vezes o arrocho do ministro Joaquim Levy nos direitos trabalhistas caberia nessa lambança de múltiplos de centenas de bilhões de reais?
 
Nada.
 
Fica tudo no estrito limite do recato formal.
 
Publica-se. Mas apenas o suficiente para guarnecer as aparências.
 
De preferência nas páginas internas.
 
Enquanto o alto generoso da primeira página é dedicado à  foto esparramada dos destemidos rapazes do juiz Moro, de cuja  equidistância já se teve notícia na campanha eleitoral de 2014.
 
Enfim, um tratamento entre compadres.
 
Há uma lição  de incontornável urgência que essa discrepância nos ensina.
 
Em primeiro lugar, que a gatunagem na intersecção entre o público e o privado não é um efeito colateral do maior intervencionismo estatal. Ela é favorecida no capitalismo neoliberal justamente pela porta giratória cada vez mais lubrificada, que une burocracias de pouco ou nenhum compromisso com o interesse público e oportunidades sedutoras de servir aos senhores do mercado.
 
E mais: que a equação fiscal de um Estado assim esquadrejado  condensa uma correlação de forças que se reflete na composição do ajuste em uma crise de desenvolvimento.
 
Apetrechada da livre mobilidade dos capitais, a elite brasileira aprendeu a extrair vantagens desse definhamento do ethos público em nosso tempo.
 
Apartada do destino da Nação, passou a enxergar no Estado um anexo para usos e abusos, não uma ferramenta de construção de um futuro compartilhado.
 
Esse é o zelo público que boa parte dos comitês e falanges que evocam o verde e amarelo na Paulista nutrem pelo país.
 
Tornar esse divisor de interesses vispivel  aos olhos da população nas atuais condições de liberdade de informação  --como o demonstra a parcialidade da mídia nos casos citados-- requer um símbolo de magnetismo programático incontrastável.
 
Hoje não há uma liderança individual capaz de personificar essa referência.
 
Tal lacuna dissemina em setores crescentes da sociedade um sentimento de impotência diante de uma transição de ciclo econômico marcada por correlação de forças instável, desprovida de equivalência institucional, ademais de submetida às determinações de um capitalismo global avesso a qualquer ordenamento que não o vale tudo dos mercados.
 
A persistência do sectarismo no campo progressista e a incapacidade da esquerda e dos democratas de construírem um repto de esperança e engajamento político fazem o resto.
 
O conjunto escava o fundo do abismo, em vez de libertar o país do atoleiro em que vive a democracia e o crescimento.
 
Sim, há os equívocos cometidos em 12 anos de governos progressistas nas condições do Brasil realmente existente.
 
São graves; tão graves que ameaçam remeter o sonho do PT para o éter da história.
 
Mas é preciso mais que reiterar obviedades para mudar a correlação de forças na crise atual.
 
Quem só enxerga pertinência na ação quando protagonizada por partidos perfeitos, de bases impecavelmente organizadas e esclarecidas, com lideranças saídas de uma biblioteca marxista, corre o risco de aguardar por um bonde em falta no século 21. E que talvez nunca tenha existido.
 
O risco é dormir o sono dos justos em seu paraíso ideológico.
 
E acordar em um país em carne viva, atropelado por um comboio de aflorada civilidade, da qual os meetings da Paulista são apenas um delicado aperitivo.

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