quarta-feira, 2 de julho de 2014

Haddad aposta na democracia contra o caos                                 

Durante quase toda sua história, São Paulo foi tratada como um piquete de engorda do lucro imobiliário. A urbanização caótica que a define é expressão disso.

Saul Leblon    


Divulgação
Durante quase toda a sua história, São Paulo foi  tratada como um piquete de engorda do lucro imobiliário.

A urbanização caótica que a define é a pura expressão daquilo que os mercados são capazes de produzir, deixados ao próprio arbítrio.

Não por acaso, a maior crise do capitalismo desde 1929 teve seu epicentro na lambança entre o capital financeiro e o capital imobiliário.

A ocupação privada do solo é a mina de ouro de uma metrópole capitalista. Como nas lavras distantes, o fastígio dos garimpeiros imobiliários deixa para trás um rastro de cicatrizes de difícil reversão.

Riqueza e caos, quem já viu um sabe que essa é a fotografia mais fiel de um garimpo. Nada caracteriza melhor São Paulo do que esse binômio  síntese da efervescência capitalista.

Que de quando em vez a população submetida a essa chibata radiosa eleja  –a contrapelo da ordem unida do dinheiro e da mídia--  um prefeito originário da esquerda diz algo sobre a natureza asfixiante do cotidiano nesse defumador de vidas.

Intuitivamente, esses espasmos de soberania refletem uma esperança formulada com argúcia pelo geógrafo marxista David Harvey: ‘o direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente’.

O dinheiro graúdo e seus detentores sabem preservar seus direitos na cidade, mas os pobres não tem como exercê-los.  A menos que rompam com a inércia e se organizem.

Em 2012  São Paulo elegeu Fernando Haddad com 3,3 milhões de votos, derrotando o tucano José Serra que tinha o apoio de todas as ramificações graúdas do capital.

Haddad assumiu uma prefeitura afogada em corrupção, com uma dívida que é o dobro da receita líquida –da qual 13%  são destinados ao pagamento de juros.
 
Enfrentou manifestações populares, em junho de 2013, calcadas na insuportável deterioração da qualidade de vida na maior capital brasileira.

Hoje vê sua popularidade evoluir para um ponto de inflexão, ao atingir 61% de regular, ótimo e bom, segundo o Datafolha, ao mesmo tempo em que entrega à população um Plano Diretor cuja costura consagra um método diferente do que tem sido a gestão da cidade.

O novo  plano faz parte de uma determinação de criar as bases para uma regulação social que devolva a metrópole a seus cidadãos.

Não por acaso, a primeira resposta de Haddad aos protestos de junho foi criar um Conselho Municipal Popular –o maior conselho popular da história brasileira com 1.125 eleitos pelo voto direto, na proporção de 1 por 10 mil habitantes.

Com pouco espaço na imprensa e uma divulgação algo despolitizada de parte da própria prefeitura,  era, paradoxalmente, a resposta mais arrojada ao anseio de participação ecoado nas ruas todo o país.

Uma de suas primeiras tarefas foi intensificar o debate em torno do Plano Diretor agora aprovado, depois de 110 audiências com a participação de 25 mil pessoas.

O ‘método Haddad’ se fortaleceu com a aproximação entre a  prefeitura e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, cuja mobilização foi decisiva para impedir que o conservadorismo adiasse ou retalhasse a votação das diretrizes que vão ordenar a vida da cidade até 2030.

Uma das mais importantes é a ampliação das áreas com destinação preferencial à habitação popular, que no cálculo dos urbanistas significará um aumento superior a 160% em relação ao plano anterior.

No final de 2013, quando centuriões do PSDB foram à Justiça e derrubaram a cobrança do IPTU progressivo, analistas isentos –ideológicos são os outros— precipitaram em anunciar as exéquias da gestão Haddad.

O IPTU revigorou o espírito separatista bandeirante cujo horizonte comunitário começa e termina no elevador de um prédio de luxo.  O resto são câmeras de vigilância, guardas particulares e as hordas de ‘gente diferenciada’.

Como é possível construir uma nação  –uma cidade que seja, a partir dessa angulação seletiva?

Não é possível e nem eles se propõem a isso.

Marx disse que ‘o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés’.

A ideia de que esse açougue possa ser administrado pelo livre curso dos interesses graúdos  que o dominam é o que de mais próximo se pode conceber  em termos de barbárie moderna.

É disso, da repressão ao livre curso dos mercados sobre a cidade, que trata o Plano Diretor de Haddad.

Em ponto pequeno, trata-se da mesma disputa entre dois projetos de país  em confronto nas eleições de outubro: o passo seguinte da história brasileira será determinado pelos  impulsos cegos do  dinheiro ou pela construção de uma democracia social negociada?

A história sugere que a passagem de uma época para outra requer não apenas condições objetivas, mas rupturas de engajamento social que  reúnam a  energia da força e do consentimento para desbravar  novos caminhos.

O novo caminho no caso de São Paulo significa tornar  a força da cidadania  o motor determinante na gestão da cidade.

Diante do risco da morte súbita, Haddad apostou na democracia contra o caos.

A provação do Plano Diretor mostra a pertinência dessa escolha.

Leia abaixo alguns parâmetros extraídos de uma leitura preliminar do novo Plano para a cidade de São Paulo:

1. Estabelece que o Coeficiente de Aproveitamento  Básico de terrenos será igual para toda a cidade, algo talvez inédito no país. Toda construção acima dessa referência terá que ser negociada com o interesse público, representado pela prefeitura e mediado pelos critérios do novo Plano Diretor.

2. Define maior rigor no parcelamento, edificação e utilização compulsória de espaços ociosos. Novas normas permitem notificar os proprietários de áreas inutilizadas  –terrenos ou edificações--   que estarão sujeitos ao IPTU progressivo e também à desapropriação com títulos da dívida, caso ignorem as advertências.

3.Determina a criação de um Cadastro do Valor de Terreno para fins de outorga –autorização para construir acima da área disponível. 

4. Fixa a outorga onerosa do direito de construir em  5%, em média,  do Valor Geral de Venda dos Empreendimentos. A receita  decorrente será destinada ao fundo de urbanização ( FUNDURB).  Cerca de 60% da arrecadação irá para os sistemas de mobilidade (transporte coletivo, cicloviário e de pedestres). 

5. Cria a Macroárea de Estruturação Metropolitana: objetivo é consolidar o território estratégico da cidade por meio de projetos urbanísticos definidos pelo poder municipal, a serem desenvolvidos até 2018.

6. Induz a um maior adensamento nos corredores de transporte público, graças ao coeficiente de aproveitamento. Toda a ocupação nesse perímetro obedecerá a condições urbanísticas especiais: calçadas largas, fachada ativa, incentivo a uso misto (residencial/comercial)  para fruição pública de edificações etc.

7. Promove a reordenação urbana pelo coeficiente de aproveitamento (direito de construir): áreas fora dos eixos de transporte coletivo terão coeficiente máximo 2; o centro expandido terá limites inferiores aos atuais; exceto  quadras já verticalizadas, o gabarito será de 8 andares.

8.Cria a Cota de Solidariedade: estima-se que a área destinada a ZEIS, zonas especiais de interesse para moradia social terá um crescimento superior a 160% em relação ao último plano diretor.

9. Eleva capacidade financeira do município para gerir áreas de interesse social: vincula 30% do FUNDURB para compra de terrenos com essa finalidade.

10. Expande e reforça as políticas para a área  rural, ambiental e cultural através das Zonas Especiais de Preservação Cultural, Fundo Municipal de Parques, Plano de Desenvolvimento Rural do município e Plano Municipal de Mata Atlântica.

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