"Um País
Chamado
Favela"
CAPÍTULO 1º
A refavela: onde o Brasil muda primeiro
Divulgação |
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Com informações inéditas, autores desmistificam a favela de hoje |
Quem comanda o processo de mudança no Brasil? Quem lança tendências? Quem aprova ou reprova um programa social, uma linha de eletrodomésticos ou uma nova música? Resposta simples: são os ingressantes no mercado de consumo, de modo especial os 11,7 milhões de habitantes das favelas, grupo que equivale a 6% da população brasileira. Com vigor, eles movem a onda transformadora que varre o país no século XXI. De modo ligeiro, essas pessoas constituem novos padrões de consumo, reinventam atividades econômicas e contribuem decisivamente para definir o perfil cultural do país dos emergentes.
Se compusessem um estado, as favelas seriam o quinto mais populoso da federação, capaz de movimentar 63 bilhões de reais a cada ano. Ainda assim, o universo da favela parece invisível à grande mídia, aos intelectuais e à boa parte dos planejadores de negócios, que ignoram e desprezam seu poder transformador.
Empenhado em decifrar os enigmas que marcam esse fenômeno de metamorfose, o Instituto Data Favela realizou um estudo inédito sobre esse território ainda pouco explorado da cidadania. Os pesquisadores - membros de comunidades, treinados especificamente para executar a tarefa - investigaram 63 favelas em dez regiões metropolitanas do Brasil e ouviram com método e atenção 2 mil pessoas. O resultado da Radiografia das Favelas Brasileiras pode parecer surpreendente se adotarmos como baliza de conhecimento o estereótipo midiático, em que os moradores de comunidades, de modo invariável, figuram como miseráveis incultos, indolentes e bárbaros. Efetivamente, não foram esses cidadãos que encontramos nas ruas, nas vielas e nos becos percorridos.
Uma análise geral dos resultados, porém, exibe uma favela muito menos pobre do que se imaginava, mais conectada e ansiosa por completar processos de inclusão social e econômica. Um observador desavisado ficará admirado, por exemplo, com o fato de que 94% dos favelados se consideram felizes, índice muito semelhante ao da avaliação geral dos brasileiros, apenas um ponto percentual acima.
Em 2013, a média salarial do favelado era de 1.068 reais contra apenas 603 reais, em 2003. Trata-se de um salto notável de 54,7%. No Brasil em geral, a renda pulou de 1.172 reais para 1.616 reais, uma evolução de 37,9%. Conclusão: na favela, o ritmo do avanço é mais acelerado.
O bem-estar recente, portanto, tem relação direta com o processo contínuo de ascensão social e econômica. No cotidiano de lutas e desafios, os moradores das favelas favoreceram-se de mais recheio na carteira e mais comida na geladeira.
Houve elevação da renda em todas as regiões pesquisadas, ainda que prevaleçam disparidades flagrantes, por exemplo, na escala dos rendimentos. A renda média do trabalho principal numa família gaúcha era de 1.158 reais; no Rio, 1.090 reais. Na outra ponta, no Nordeste, o mantenedor "máster" embolsava, em média, 821 reais no Ceará e 762 reais na Bahia.
Na época da pesquisa, no trimestre que fechou 2013, a maior parte dos moradores das favelas já pertencia à classe C, estrato que nesses núcleos praticamente dobrou de tamanho em dez anos. Trata-se de um crescimento extraordinário e que inspira uma reflexão sobre o processo recente de inclusão social massiva no país. A parcela de famílias faveladas na classe média é maior do que a do Brasil como um todo. Isso mesmo: 65% a 54%.
No campo da vida privada, essa visão depende, sobretudo, do que se vê no horizonte próximo. As coisas parecem bem se a reforma no segundo andar da casa do vizinho progrediu. Se esse mesmo sujeito trocou seu Passat 76 por um Gol seminovo, é sinal de que a comunidade como um todo avança. "Se ele conseguiu, posso conseguir também", raciocina o cidadão.
Os chefes de família desejam ver os filhos na universidade, mas buscam, eles mesmos, um diploma em curso superior. Gente que sempre viveu de salário cogita, agora, montar uma empresa na comunidade. Pode ser uma pizzaria, um albergue, uma loja de presentes ou uma oficina de reparos automotivos. Há possibilidades em todos os setores. Formidavelmente, pessoas com até 60 anos, homens e mulheres, veem a vida em aberto. Ainda há jogo pela frente.
As formidáveis histórias de vida dessas pessoas podem justificar essa percepção, apenas em parte influenciada por concepções religiosas. Os jovens, em particular, são filhos e netos daqueles cidadãos abandonados e maltratados pelo Estado. Criados a partir dessa memória familiar recente, ainda não enxergam o governo, qualquer que seja, como provedor de bem-estar. Não raro treinados em modelos espartanos de sobrevivência, converteram-se em homens e mulheres particularmente resilientes, que aprendem, enfrentam preconceitos e fazem acontecer. Incentivados à prática de um exercício de futurismo, 75% se veem na classe média em 2023; enquanto 10% esperam conquistar um posto na classe alta. Pode-se validar, assim, pelo menos no que diz respeito à parcela maior dos habitantes de favelas, a tese de que o brasileiro nunca desiste da luta.
O fator juventude, aliás, é fundamental à compreensão do pensamento silenciosamente revolucionário da favela. Nada menos que 26% dos integrantes das comunidades tinham idade inferior a 15 anos na época da pesquisa. No total, 61% não haviam completado 35 anos. Na virada de 2013 para 2014, a média de idade dos brasileiros era de 33,1 anos; na favela, de 29,7 anos.
Outros dados revelam outras características da heterogeneidade desses agrupamentos. Mais de 130 anos depois do surgimento do núcleo pioneiro Quilombo do Jabaquara, em Santos (SP), reduto urbano de desterrados, a favela ainda é lugar de entrantes e forasteiros, particularmente nas regiões Sul e Sudeste. Em São Paulo, 52% dos moradores de comunidades não nasceram no estado. No Rio de Janeiro, essa parcela é de 29%.
Cabe destacar outra informação importante, que é a mobilidade das famílias nessa complexa malha de núcleos habitacionais, muitos deles de existência fugaz. Há favelas que surgem e, pouco tempo depois, são desfeitas ou transferidas para outro terreno, dentro ou fora do município. Foi o que se viu, por exemplo, na cidade de São Paulo, a partir da segunda metade da década de 2000, quando muitas comunidades sucumbiram, total ou parcialmente, ao fogo, em episódios não completamente esclarecidos pelas investigações policiais.
Outro exemplo famoso é o de 9 mil brasileiros que, em 2012, perderam subitamente o endereço, quando a polícia desocupou, de maneira violenta, a área da tradicional comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). O núcleo popular ocupava uma área três vezes maior que a do Vaticano. Contava com associações de moradores, sete igrejas, dezenas de estabelecimentos comerciais e uma grande praça, chamada Zumbi dos Palmares.
Se o cotidiano constitui vidas em trânsito, não é de estranhar que apenas 29% das pessoas tenham nascido na comunidade em que residiam na época da pesquisa. Viver na favela é, sobretudo, construir laços. No entanto, é também tocar a vida para a frente quando seus moradores são abruptamente "quebrados", seja por motivos particulares seja por inflexões derivadas de decisões no âmbito da gestão pública. Resistem melhor aqueles que sabem se mover na hora certa, que sabem recomeçar em outro lugar.
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AUTORES Renato Meirelles e Celso Athayde
EDITORA 'Gente'
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