Para católicos, projeto do Papa
mistura Teologia da Libertação
e Francisco de Assis (Eduardo Maretti)
Condução cuidadosa, mas firme, por Francisco, de questões com alto potencial político, parece também encontrar eco no público talvez mais importante que o papa pode atingir, os jovens...
JORGE MAMANI/ABI
Papa é recebido por multidão em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, um dois países mais pobres do continente
A viagem do papa Francisco à América do Sul parece ter finalmente mostrado que as diretrizes escolhidas pelo pontífice, cada vez mais comentadas por católicos progressistas, são de fato reais, e não meros jogos de palavras. O fato de ele ter escolhido três países entre os mais pobres do subcontinente – Equador, Bolívia, Paraguai – foi notado inclusive pela imprensa europeia.
“Estou vendo como extremamente positivo o pontificado de um papa que se se afina com os pressupostos da Teologia da Libertação. Nessa viagem à América Latina, ele fez uma nítida opção pelos pobres e uma crítica contundente ao sistema capitalista”, observa o escritor Frei Betto.
Em missa celebrada em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, o pontífice perguntou: "Reconhecemos que este sistema impôs a lógica dos lucros a qualquer custo, sem pensar na exclusão social ou na destruição da natureza?" Na capital La Paz, ele disse que a lógica do consumismo busca transformar tudo em objeto de troca. Segundo o papa, trata-se de “uma lógica que pretende deixar espaço para poucos, descartando todos aqueles que não produzem, que não se consideram aptos ou dignos porque, aparentemente, não geram resultados".
Para Frei Betto, a encíclica papal, a primeira de seu pontificado (divulgada em junho), é o documento mais avançado sobre o tema (meio ambiente) que se produziu até hoje, no âmbito da humanidade. Ele avalia a encíclica como superior a outros documentos, surgidos em cúpulas mundiais (como a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro). “Nem a Carta da Terra é tão contundente, crítica, analítica e abrangente, porque vincula o tema à questão social dizendo que os pobres são as principais vítimas da devastação da Terra.”
A condução cuidadosa, mas firme, por Francisco, de questões com alto potencial político, parece também encontrar eco no público talvez mais importante que o papa pode atingir, os jovens.
Eduardo Brasileiro, da Pastoral da Juventude e membro da Igreja Povo de Deus em Movimento, de Itaquera (zona leste de São Paulo), que esteve na Bolívia como integrante dos movimentos sociais que acompanharam a visita do papa, concorda que a viagem consolidou “um projeto”. “E o projeto dele encanta porque é o projeto de Francisco de Assis. É um projeto de diálogo, de fazer pontes”, afirma. Na opinião do jovem, a imagem que fica do encontro com os movimentos sociais na passagem pela América é que “ele fez uma grande sinalização para os movimentos populares entrarem num movimento de unidade”.
Eduardo considera importante observar o fato de um líder religioso “entrar no espaço político” com a proposta do diálogo. “É diferente dos outros, que vinham com uma carga muito forte de regras para cima das pessoas, e não de diálogo. Ele ouve as pessoas, isso é o que mais marca o papa. É um marco na história da Igreja e também na política, porque é um líder religioso que vai dialogar com governos populares, que priorizam o povo.”
Como se sabe, os dois últimos papas, João Paulo II e Bento XVI, que comandaram o Vaticano de 1978 a 2005, eram ultraconservadores e claramente perseguiram as alas progressistas no mundo todo.
Para Regina Soares Jurkewicz, doutora em ciência da religião e membro do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, Francisco tem tido posições que valorizam muito mais o ser humano do que "as pompas que o Vaticano oferece”.
Regina também destaca o tema da encíclica. “O meio ambiente é um tema urgente para a sociedade.” O pontificado de Francisco é ainda “um caminho muito interessante no sentido de uma proposta de igreja focada na realidade das pessoas mais empobrecidas, em favor da justiça social”. Ela lembra ainda que Francisco está “enfrentando as contradições e corrupção na Cúria Romana”.
Em setembro de 2014, o cardeal polonês Jozef Wesolowski, de 66 anos, foi preso por “abuso de menores”, de acordo com o porta-voz papal, Federico Lombardi, por ordem pessoal do papa. Em fevereiro deste ano o Vaticano fez outro gesto significativo e “sem precedentes”, segundo alguns veículos de imprensa europeia, ao receber um grupo de lésbicas e gays católicos, dos Estados Unidos, em audiência geral semanal com o papa Francisco.
Regina avalia que, apesar de Francisco possuir “uma maneira de ser simples, uma posição verdadeira no campo das questões ligadas à justiça social”, ou seja, franciscana, há necessidade de evoluir no campo moral e no que diz respeito aos direitos LGBTs e das mulheres. Segundo ela, o papa não propôs mudanças concretas quanto a questões ligadas à presença da mulher dentro da igreja e a questões da sexualidade.
“Precisava reconhecer que já existe um caminho pensado por teólogas feministas. Reconhecer a necessidade de alterações profundas. Favorecer o acesso ao sacerdócio das mulheres. O papa não tem dado demonstrações nesse sentido.”
Porém, ela reconhece que é uma tarefa complexa para o papa. “Isso mexe no âmago da doutrina. É difícil acreditar que mude, mas outras igrejas reconheceram as mulheres como pastoras, bispas. A Igreja Anglicana, por exemplo.”
Já para Eduardo Brasileiro, da Pastoral da Juventude, o fato de o Vaticano ter recebido um grupo LGBT em audiência geral no Vaticano já é muito significativo. “Acho muito importante. Não cabe tudo ao papa. O papa sinaliza avanços, mas sabe que nem tudo está na mão dele.” Para ele, o papa é muito habilidoso politicamente, pois não mistura o que é necessário para a sociedade e para a igreja. “Acho que ele é muito cuidadoso em tudo o que faz. Dentro do estado laico, ele deixa claro que as pessoas não podem ser vítimas de preconceito, que têm o direito de ser o que quiserem ser. Mas dentro da igreja não pode simplesmente jogar as questões sem fazer o processo educativo, para que aos poucos as pessoas comecem a ter a aceitação dentro da moral católica.”
Existem expectativas sobre o que será debatido e quais os resultados do sínodo (assembleia geral ordinária) que vai acontecer no Vaticano entre os dias 4 e 25 de outubro deste ano, que discutirá o tema “A Vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”.
A cruz de Evo
Para Frei Betto, a importante e histórica viagem de Francisco à América do Sul teve um momento constrangedor. “O (presidente da Bolívia) Evo Morales poderia tê-lo poupado daquele presente do Cristo pregado na foice e martelo. Achei aquilo uma coisa constrangedora. A esquerda de vez em quando comete essas bobagens”, critica.
Na opinião de Eduardo Brasileiro, o gesto em que o papa recebe a cruz de Evo tem uma importância simbólica e de linguagem. “Significa muito, porque é um líder da igreja que sempre acolheu outros tipos de martírio que não esses, que representam as lutas por direitos humanos na América Latina por terra, teto e trabalho, as pessoas que morreram.”
“Pontificado breve”
Mas se as “sementes” de uma nova igreja vão frutificar, vai depender principalmente do tempo do pontificado. "Tenho a sensação que meu pontificado será breve. Quatro ou cinco anos. Não sei, ou dois, ou três. Pelo menos dois já passaram. É como uma sensação vaga”, declarou o papa.
“Ele lançou as sementes legitimando a ação de milhões de cristãos pelo mundo afora. Se isso vai envolver toda igreja, não dá para prever. Depende de quanto ele vai viver, quanto vai conseguir implementar a reforma que quer fazer na igreja. Se ele morrer amanhã e elegerem um papa conservador, volta tudo atrás” avalia Frei Betto. “Não houve tempo suficiente para que a presença de Francisco se impregnasse no conjunto da igreja.”
O jovem Eduardo Brasileiro também deseja vida longa ao papa. “Se ele morre, espero que não aconteça, ficaria um buraco e não daria para consolidar muita coisa.”
Em carta entregue pelos movimentos sociais católicos ao papa, em sua passagem pela América, o primeiro dos sete tópicos enumerados pelos jovens foi o “indiferentismo do clero”, segundo o qual “Francisco, Bispo de Roma, ainda não foi incorporado em muitas das Dioceses do Brasil”. “Caminhando para o terceiro ano de seu ministério apostólico, não vemos entusiasmo e efetivo empenho pastoral em fazer do ‘Evangelho da Alegria’ referencial das práticas pastorais”, diz a carta.
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