quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Por que   Marina tergiversa tanto? Porque está na Bíblia

Kiko Nogueira                 


A Bíblia já foi usada para justificar tudo ou quase tudo. A escravidão, o genocídio, o preconceito, o racismo, o antissemitismo, a caça às bruxas, a pena de morte, a perseguição — e também, claro, o oposto disso.
“Qualquer um ficaria louco se tomasse a Bíblia a sério; mas para tomá-la a sério essa pessoa teria de já ser louca”, escreveu o velho ocultista inglês Aleister Crowley. Todo religioso a adapta ao seu bel prazer. Especialmente os fundamentalistas, que dão ao livro o status de constituição.
Há um vídeo de Marina Silva circulando. Marina, como se sabe, não é uma campeã da clareza ou da coerência. Era contra os transgênicos, mudou de ideia. Era contra a transposição do São Francisco, não é mais. Acredita que Deus criou o mundo, mas não é criacionista. A lista é longa.
É uma tarefa inglória tirar dela uma declaração peremptória sobre qualquer assunto. Marina rodeia o tema, dá uma volta, uma semicolcheia, avança, volta três casas e o interlocutor depreende com esforço sua mensagem.
Enfim, um fenômeno da tergiversação.
O que, segundo ela, não chega a ser um problema — já que Jesus Cristo também não era lá muito direto, ao menos na visão dela.
Voltando ao vídeo: trata-se de uma pregação sua no bairro do Belenzinho, em São Paulo, aparentemente no início de agosto. Marina está em sua igreja, a Assembleia de Deus, e sua peroração antecede a de Eduardo Campos, sentado na primeira fileira do palco, ao seu lado.
“A graça não é de graça e tem um preço muito alto”, inicia ela, explicando por que havia resolvido concorrer como vice pelo PSB. “Eu poderia ter me omitido, ficado na minha zona de conforto, mas a própria palavra de Deus diz que as raposas têm suas tocas, as aves do céu têm ninhos, mas o filho do homem não tinha onde repousar sua cabeça. Isso significa que eu também não podia me omitir”.
E então ela chega ao cerne da questão: “Em Mateus, no capítulo 27, versículo 11, Jesus está numa situação muito difícil, em que ele estava sem possibilidade de se defender com justiça. Qualquer coisa que ele dissesse poderia agravar a situação.”
Ela lembra que Jesus foi posto diante de Pilatos, que lhe perguntou: “Você é o rei dos judeus?” E Jesus respondeu: “Tu o dizes”.
Marina conta que ficava com “a sensação de que Jesus havia saído pela tangente”. Ela se recorda de que já se viu nessa situação. Um belo dia estava no carro com sua amiga Jane, da Igreja Batista, e Jane criticou a maneira como ela estava vestida. Marina devolveu: “Tu o dizes”.
“E de repente me veio o entendimento desse ‘tu o dizes’”, ela fala.
“Não tem nada a ver com sair pela tangente, muito pelo contrário. Quando você propõe algo transformador, você paga o preço. O que é transformador não vai pela porta larga, vai pela porta estreita.‘Você transforma alguma coisa, irmã Marina, neste país?’ Eu digo: ‘Tu o dizes’” Onde está a palavra nova, a verdadeira transformação, ali vai haver oposição, dificuldade”.
O messianismo marinista passa obrigatoriamente pela tergiversação porque Jesus fazia o mesmo — ao menos, repito, na interpretação de sua profetisa Marina. Para sorte, ou azar, dela e de tantos pastores e bispos do Brasil, o protagonista dessas fábulas nunca estará disponível para comentar.
Kiko Nogueira é diretor-adjunto do 'Diário do Centro do Mundo'. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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