“Minha empregada é
muito abusada”
O recalque da perda da posse por parte da elite no Brasil
Rosana Pinheiro-Machado 
Esta
coluna começou no churrasco de domingo, quando, na fila do supermercado, uma
mulher disse: "Minha empregada está muito abusada". Sua interlocutora
respondeu: "Nem me fale, a minha também". Ao longo do almoço, eu e
meus amigos tentávamos explicar o que significava a palavra “abusada” para um
estrangeiro. Como fazê-lo entender que, independentemente da eficiência, a
maioria das empregadas brasileiras seria, em algum momento, considerada
“abusada”?
A
dificuldade era dimensionar a extensão do conceito. Começamos pela obviedade do
significado da palavra “abuso”, que remete a algo de superlativo. Abusar é usar
alguma coisa além do limite socialmente esperado. Eu explicava que era como
invadir um espaço simbólico ou físico. Por exemplo, quando a empregada é
abusada por não subir no elevador de serviço, mas no social (na verdade, foi
difícil explicar que no Brasil muitos edifícios tinham dois elevadores e o
famoso “quarto de empregada”).
Prossegui,
explicando que se a empregada come muito, se toma muito refrigerante da
geladeira ou come as bolachas de chocolate, ela é abusada. Se ela pede uma
roupa emprestada, é abusada. Se ela senta à mesa com a família, é abusada.
De
todos esses exemplos, ele concluiu que abusada é aquela que quer mais do que
lhe foi dado, que cobiça as coisas da patroa. A conversa ficou mais complexa
porque tivemos de responder que “não”, que o oposto também era verdadeiro: uma
empregada que quer “de menos” também é abusada. Seguimos explicando que, se a
patroa oferece uma roupa velha, furada e fedida e empregada “tem a au-dá-cia”
de não aceitar, ela é abusada.
Ele
concluiu, então, que uma boa empregada seria, então, aquela que assume “o seu
lugar”: não pede muito, mas aceita de bom grado o que lhe é dado. Colocando o
pé para fora dessa faixa muito estreita de atuação, ela é abusada.
Grande
parte das patroas vive da lamentação de seu mundo servil em decadência, e não
sabe lidar com o orgulho e a dignidade das empregadas. Atualizando uma cultura
escravocrata, essas patroas esperam humildade e resignação ilimitadas. Para que
uma empregada não seja abusada, ela inevitavelmente terá de renovar diariamente
os votos de sua gratidão.
A
negação de presentes indignos por parte das empregadas traz à tona diversas
camadas complexas de significados. A forma desajeitada como as patroas reagem
escancara a profunda patologia social de uma classe média presa ao século XVII
– provavelmente, em uma época em que ela se imagina numa casa-grande, cheia de
porcelana inglesa e de escravos à volta, preferencialmente com uma negra para
cozinhar. Ou melhor, ela se imagina em uma novela da Rede Globo do século XXI,
onde a mulher negra ainda é explorada 24 horas por dia a serviço de suas
patroas ricas.
Essas
patroas esperam empregadas sem agência, sem protagonismo, sem voz, sem vontade
e sem opinião. (Afinal, é claro que uma empregada que dê opinião onde não foi
chamada também é abusada.) Elas esperam seres eternamente gratos por receberem
restos. Nessa lógica em que, já diria Marcel Mauss, dar é poder, uma empregada
que pede mais dinheiro para lavar a privada suja ou exige seus direitos
garantidos na Constituição, só pode ser abusada.
A
empregada é ainda mais abusada se ela tiver a petulância de viajar de avião, de
ter um celular e uma televisão melhor que a da patroa (o que é muito comum), e
se recusar o eletrodoméstico velho dizendo: “Desculpa, mas eu tenho um mais
moderno”. Nesses casos, quando a suposta cobiça se inverte, e a patroa fica sem
chão, existem duas reações comuns.
A
primeira é tentar rebaixar e ridicularizar a empregada, como a mulher que
recentemente postou nas redes sociais que não teria diarista na segunda-feira
porque a abusada respondeu por WhatsApp que tinha manicure naquele dia. A
segunda reação é começar a se lamentar, inaugurando a outra obsessão das
conversas entre patroas: a de que as empregadas limpam pouco, não pegam no
pesado, deixam tudo fora de lugar... em suma, são muito indolentes. Empregada
boa era a de antigamente.
Por
tudo isso, eu penso que não aceitar qualquer presente é um marco muito
importante na passagem de uma relação servil para a profissional (que, sim,
pode manter o afeto e a intimidade, desde que haja respeito e igualdade). A
negação revela a emergência de uma subjetividade repleta de vontades que se
impõem na esfera do trabalho. É da negação que surge uma nova era no Brasil,
pois ela quebra o círculo da dádiva e rompe com o poder do doador,
estabelecendo uma condição de igualdade baseada na troca de serviços – e não de
favores.
As
transformações recentes da sociedade brasileira indicam um leve rompimento (mas
já muito doloroso e cheio de estardalhaço) de uma relação tão pessoal quanto
doentia entre patroas e empregadas. Indica o fim do ser humano como posse de
outro ser humano. E isso, é claro, causa desespero, lamentação, recalque e
conflitos.
Ainda
tem muito a ser feito e conquistado. Muito mesmo. Espero que chegue o dia em
que eu não precise explicar o sentido da palavra "abusada". Neste
dia, perder-se-á também alguma flexibilidade do modelo de empregadas dentro de
casa. Será preciso se acostumar a ouvir “não, obrigada” e aprender a curtir
genuinamente as fotos postadas daquela viagem. Neste dia, o serviço da limpeza
será mais custoso, mas não há saída: esse é o preço de nosso desenvolvimento e
de nossa liberdade enquanto nação.
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