segunda-feira, 31 de março de 2014

Somos   educados   para  o 

analfabetismo econômico

Somos treinados a concordar com coisas que não fazem sentido. Por exemplo, pagamos um Mineirão/dia, em juros da dívida, e achamos que a Copa é o problema.

Antonio Lassance (*)                                              
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Os barões ladrões que rebaixam o Brasil
A agência Standard & Poors, uma das que fazem classificação de risco de países e empresas, alterou a nota do Brasil para pior: de BBB para BBB-.

E se alguém acha que esse é um debate econômico, está redondamente enganado. A economia continua sendo um assunto importante demais para ficar restrito aos economistas.

A elevação ou o rebaixamento da nota de um país são entendidas, mundo afora, como um sinal do quanto um país é rentável e confiável.

Confiável segundo agências de classificação especializadas em dizer aos grandes financistas internacionais onde investir seu dinheiro para obter maiores lucros, com a garantia de que não tomarão um calote.

 A Standard & Poors foi criada no século XIX, nos Estados Unidos, por Henry Varnum Poor, em plena época dos chamados barões ladrões.

Os grandes investidores que Henry Poor avaliava e recomendava ganhavam dinheiro com ferrovias,  siderúrgicas e empresas de petróleo.

Uma parte significativa dos lucros desses magnatas vinha da apropriação de terras e outros ativos públicos e da arte de usar e roubar o dinheiro de pequenos investidores desavisados, que depositavam suas economias no nascente mercado de ações.

Esses barões ladrões do século XIX não eram tão diferentes dos mais recentes, que causaram a grande crise financeira de 2008 e 2009. Todos bem recomendados pela Standard & Poors.

A avaliação de risco do Brasil basicamente expressa o quanto o país continua sendo um dos paraísos mundiais do rentismo, a mágica de ganhar dinheiro com o trabalho dos outros. Quanto mais a política econômica de um país é ditada pelos interesses dos rentistas, melhor a nota.

Para não ser rebaixado pelas agências, um país precisa rebaixar sua política econômica. Tem que seguir uma receita orientada pelo objetivo de fazer crescer o volume de dinheiro movimentado pelas finanças, e não o de fazer crescer o país.

E ainda tem gente que acha que nosso grande problema é a Copa

Se o Brasil sofreu o rebaixamento de um único pontinho, “o que eu tenho a ver com isso?”, pode e deve perguntar o cidadão. Como diria o velho Brecht, tem a ver com o custo de vida, o preço do feijão, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio. Não deveria ter, mas tem.

Para dizer a verdade, esse rebaixamento tem a ver até com a Copa do Mundo de futebol, pois, enquanto tem gente preocupada, com razão, com o custo dos estádios, esqueceram-se do principal.

Para se ter uma ideia: o País vai gastar cerca de 8 bilhões em estádios. É, de fato, muito dinheiro. Mas o analfabetismo econômico ajuda todo mundo a se esquecer de fazer a conta que importa.

O Brasil gastou, em 2013, R$ 248 bilhões com o pagamento de juros, segundo o Banco Central. Pois bem, dividindo esse valor pelos 365 dias do ano, pagamos mais de R$ 679 milhões por dia.

Vamos comparar com a copa? Dá quase para construir um estádio do Mineirão por dia. Aliás, registre-se que o Mineirão só tem R$11 milhões de dinheiro público envolvido em seu financiamento. O restante será pago pela iniciativa privada. Dois dias de juros da dívida pagam mais de um Maracanã.

E ainda tem gente que acha que a copa é o absurdo dos absurdos do gasto em dinheiro público. É a prova cabal do quanto perdemos a noção das coisas.

Perdemos a noção de grandeza e a de proporção. Com isso, perdemos também o senso crítico em relação a esse buraco negro de nossas finanças públicas. Depois, perdemos o foco das prioridades.

Finalmente, erramos o alvo das manifestações. Tem gente malhando o Judas (a Copa, a Fifa) fingindo que está enfrentando o Império Romano. Se não for piada, é teatro.

Quem sabe, um dia, alguém se lembre de escrever a frase em um cartaz: “Cada 1% de aumento na taxa de juros custa R$20 bilhões aos brasileiros”. É uma mensagem mais consistente e valiosa do que “Não é só pelos 20 centavos”.

Vinte bilhões são duas vezes e meia, por ano, o que iremos investir em estádios, que serão pagos em 15 anos em empréstimos ao BNDES – ou seja, dinheiro que voltará aos cofres públicos.

O rebaixamento do debate econômico nos fez perder a noção das coisas

O verdadeiro rebaixamento que o país sofre não é de hoje e não é só o da Standard & Poors. O mais prejudicial de todos é o rebaixamento do debate sobre os rumos da economia do país.

O Brasil continua sendo um carro em que os mecânicos  do mercado puxam o freio de mão e culpam o motorista pela dificuldade de acelerar o crescimento, melhorar a infraestrutura e a qualidade do serviço público.

A primeira mudança para uma tomada de consciência é superar a visão de que os juros são um problema só da macroeconomia e que sua conta é paga pelo governo. Não é.

O governo é apenas quem assina o cheque. Quando falamos “o Brasil”, muita gente ainda acha que estamos falando do governo. Perdemos, talvez na ditadura, e ainda não recuperamos a noção de que o Brasil são os brasileiros.

Quem confunde isso com nacionalismo barato e governismo acaba por reproduzir, às avessas, a velha maneira de pensar ensinada pela própria ditadura. Puro analfabetismo cívico.

Quem paga a conta cara dos juros altos são todos os que pagam impostos, principalmente os mais pobres, que, proporcionalmente, pagam mais impostos.

A luta para inverter prioridades precisa convencer milhões de brasileiros de que é preciso virar as finanças públicas de cabeça para baixo.

Hoje, a principal função do Estado brasileiro é pagar juros, os maiores do planeta. O Brasil é um dos três países que mais comprometem recursos públicos com o pagamento de juros, em proporção do PIB, conforme diz até o Fundo Monetário Internacional.

A educação, a saúde, a segurança pública e os investimentos em infraestrutura são pagos com o troco do que sobra do pagamento de juros.

Somos educados para o analfabetismo econômico

O problema que temos em mãos lembra o alerta feito por um professor de Matemática, com cara de cientista maluco, chamado John Allen Paulos, em seu livro “O analfabetismo em Matemática e suas consequências" (publicado originalmente em 1988).

O divertido livro de Paulos relembra casos famosos que denunciam a falta nem tanto de habilidade, mas de uso prático e corriqueiro até das operações matemáticas mais simples.

A principal denúncia de Paulos é ao quanto nos desacostumamos da operação mais essencial de todas, não exclusiva da Matémática: pensar sobre os problemas e raciocinar logicamente sobre eles.

Paulos nos avisa que isso é um perigo. Corremos riscos diários com essa nossa preguiça de pensar logicamente sobre os problemas e com a nossa incapacidade de extrair resultados práticos e numéricos dessas operações.

O que acho mais curioso nesse livro, e muito similar ao que acontece em nosso debate econômico, é que esse tipo de analfabetismo é ensinado diariamente.

É como se fôssemos educados para o analfabetismo. Somos treinados a esquecer a lógica dos argumentos e a concordar com coisas que não fazem o menor sentido.

Paulos usa, dentre tantos exemplos, o livro “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift (1667-1745). O matemático nos mostra como o autor de Gulliver, ao descrever um gigante em uma terra de pequeninos (Lilliput), lascou o livro de grandezas absurdas, que não fazem o menor sentido.

As histórias de Gulliver são de 1726. Para não parecer tão distante, Paulos escreveu, em 1995, “Como um Matemático lê os Jornais”, publicado no Brasil como “As Notícias e a Matemática” ou “Como um Matemático lê jornal”.

Acertou na mosca. A imprensa é useira e vezeira em nos deseducar a usar não só os números, mas a lógica. É assim também com as notícias cujo título é contraditado pelas próprias matérias, armadilha comum aos que leem jornal com o espírito crítico repimpado e babando no sofá.

Terrorismo fiscal, um atentado ao raciocínio lógico

A notícia sobre o rebaixamento da nota do Brasil foi uma farra nesse sentido de propagar o analfabetismo econômico.

A conclusão enfiada goela abaixo é a de que o País precisa aumentar seu rigor fiscal e seu controle sobre a inflação.

Ou seja, o Brasil precisaria urgentemente cortar gastos e continuar elevando sua taxa de juros. Como assim, se o nosso principal gasto extraordinário é com juros? Não faz sentido, faz? Depende pra quem.

A ideia brilhante para atender às agências de risco é cortar o que o governo faz para pagar mais juros. Faz todo o sentido – para o financismo, não para a maioria dos brasileiros.

Mal começou o ano, os problemas sazonais dos preços dos alimentos, que impactam também os alugueis, são traduzidos na conclusão disparatada e tão absurda quanto os números das “Viagens de Gulliver”.

A lógica é a seguinte: se choveu muito, ou se choveu pouco, a inflação de alimentos elevou-se. Solução: aumentem os juros. Elevando-se os juros, as pessoas vão comer menos alimentos e os agricultores assim plantarão mais alimentos. Com juros mais altos, choverá a quantidade certa, no lugar certo. Entendeu? Nem eu.

O preço do tomate disparou, então o remédio é aumentar os juros. A pessoa irá desistir de levar tomates quando pensar que a taxa Selic está mais alta. Quando a taxa Selic alcança dois dígitos, as pessoas trocam a macarronada a bolonhesa por lasanha ao molho  branco.

Os alugueis subiram, então os juros precisam aumentar, pois, em Lilliput, a terra de quem pensa pequeno, quando os juros sobem, ao contrário do que ocorre em qualquer lugar do mundo, mais imóveis são construídos e os alugueis baixam.

Engraçado, pensávamos que seria o contrário; que, com juros mais baixos, mais pessoas poderiam comprar seus próprios imóveis e se livrar dos alugueis. Aumentaria a própria oferta de imóveis e os aluguéis cairiam. Difícil entender os lilliputianos.

Essa falta de parâmetros e de noção do debate econômico causa uma deficiência grave em nossas políticas públicas.

Figuras exemplares que alertam sobre isso, como fazem Paulo Kliass, Ladislaw Dowbor e Amir Khair aqui na Carta Maior, há muito tempo, falam de coisas sobre as quais deveríamos não só prestar mais atenção, mas usar em nosso dia a dia.

Os movimentos sociais precisam se lembrar de explicar essa lógica dos argumentos aos seus militantes.

Precisam fazer as contas de quantos trabalhadores do setor público poderiam ser contratados e pagos com esses valores estratosféricos e escatológicos pagos com juros.

Precisam mostrar para a opinião pública quanto custa o reajuste de salários de suas categorias e compará-los com o que se paga em juros aos banqueiros.

Quem sabe, uma boa ideia seria acampar no gramado em frente ao Banco Central toda vez que ocorre uma reunião do Copom. E por que não fazer pelo menos um dia de luto quando se decreta aumento na taxa de juros.

Imagine todo mundo com a fitinha preta no braço explicando quanto vai nos custar pagar 0,25 ou meio ponto percentual a mais na taxa Selic, e quanto deixará de ser aplicado em prioridades para o país.

Pode até não ajudar a pressionar a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, mas, pelo menos, seria um sinal de quantas pessoas terão se livrado do analfabetismo econômico atroz que nos acomete.

Vaticano

Reformador. Ou revolucionário?

O Papa completa o primeiro ano do seu pontificado e exibe, antes de mais nada, uma estatura de estadista. 
Claudio Bernabucci           Carta Capital
                                                                                                                                                                      Osservatore Romano
Este conselho funciona como o gabinete de um presidente que toma as decisões finais em perfeita solidão
O papa Francisco celebrou seu primeiro aniversário de pontificado no dia 13 de março, não no Vaticano, mas no convento do Divino Maestro, em Ariccia, pequena localidade nos arredores de Roma. Ainda uma vez surpreendeu: nenhuma celebração ostensiva aos olhos do mundo, mas uma semana de exercícios espirituais da Quaresma, acompanhado pelos principais representantes da Cúria vaticana. Também nos detalhes da iniciativa deixou sua marca: viagem de ônibus, em meio à comitiva, sem ajudantes ou secretários no séquito. Como todos os outros, pagará sua conta ao convento.
O mesmo aconteceu na Casa do Clero, residência eclesiástica em pleno centro de Roma, onde ele morou por alguns dias antes do Conclave, no ano passado. Imediatamente depois da eleição, apresentou-se no caixa e pagou regularmente sua conta, contrariando quantos o lembravam de que ele se tornara dono do lugar. “Há que se dar o bom exemplo”, respondeu Francisco. Em seguida, evitou transferir-se para os suntuosos apartamentos pontifícios, no quinto andar do Palácio Apostólico, com janelas para a Praça São Pedro. Quando o visitou, nos dias seguintes, comentou que ali poderiam morar 300 pessoas e que ele, sozinho, se sentiria isolado. Bergoglio sempre gostou da vida em comunidade, mas, nesse caso, temia também o assédio da Cúria e seus rituais aprisionantes. Daí a decisão de ficar em uma modesta suíte de dois quartos (a 201) no albergue de Santa Marta, no interior do Vaticano, lado a lado de peregrinos e outros visitantes.
Com tal opção pela humildade, o novo papa, coerente com suas origens, caracterizou seu primeiro ano de pontificado por uma mistura de espírito misericordioso e decisões marcadas pela firmeza. A partir da escolha do nome, Francisco, santo dos pobres, feita por ele, primeiro papa da ordem dos jesuítas, belicoso esteio da Contrarreforma. Aparente contradição que Bergoglio conseguiu conjugar de maneira criativa e profunda.
A “Companhia” foi fundada por Inácio de Loyola para combater o cisma luterano e na tentativa de contrastar a gravíssima crise provocada pelo protestantismo (século XVI).
Os jesuítas já não têm o poder dos séculos passados, quando o Superior Geral da Companhia, pela grande influência que exercia na Igreja, era chamado de Papa Negro. Não obstante, eles mantêm alto o valor da própria identidade. Francisco é íntimo da cultura e das práticas da Companhia e não é, certamente, por acaso que o primeiro pontífice jesuíta foi escolhido numa fase de extrema secularização do mundo e de grave isolamento da Igreja.
Eleito por arrasadora maioria entre os 115 cardeais do Conclave (fala-se em mais de 90 votos), Francisco sucedeu ao papa que foi obrigado a se demitir ao perceber sua fraqueza diante da degeneração do catolicismo. A Igreja que Francisco herdou do infeliz Bento XVI, primeiro papa a se demitir desde a Idade Média, estava no ponto mais baixo de sua credibilidade ética e religiosa, contaminada por escândalos financeiros e abusos sexuais, lutas de poder e sórdidas conspirações.
Só 12 meses se passaram daquele buonasera! pronunciado pelo papa chamado a assumir o mando, mas já é poderosíssima a marca de Francisco na tentativa de plasmar uma Igreja missionária, como a Companhia de Jesus tradicionalmente promoveu sobretudo além-mar. Os sacerdotes são convidados a compreender o ambiente em que operam e adaptar seus cuidados pastorais às diferentes situações. E são também encorajados a confrontar-se com culturas religiosas diferentes e a dedicar especial atenção ao diálogo com os não crentes. A transformação que o papa Francisco está desenvolvendo não prevê o abandono da doutrina ou a desmontagem da arquitetura dogmática, e sim a interpretação, em formas e modalidades novas, de seus significados, adaptando-os à realidade contemporânea.
São numerosos os casos em que tal atitude metodológica encontra aplicação, em relação a temas delicados nos quais o debate, dentro e fora da Igreja, é muito aceso. Referimo-nos a problemas como o celibato dos sacerdotes, o papel da mulher na Igreja, a família, os direitos dos homossexuais etc. Todas questões cujo status quo o papa Francisco tem firme intenção de modificar. Em recente entrevista concedida ao jornal La Repubblica, o cardeal Walter Kasper, entre os mais próximos do papa, encarregado de preparar o Sínodo do próximo outono sobre a família, afirma: “A Igreja pode encontrar novas respostas para que um divorciado e casado novamente, após um período de penitência, seja readmitido aos Sacramentos. Minha posição não é fraca, mas pretende reconhecer que, através do arrependimento, todos podem receber clemência e misericórdia. Qualquer pecado pode ser absolvido. A absolvição não é contra a moral ou contra a doutrina, mas a favor da aplicação realista da doutrina, com realismo diante da situação de fato”. E ainda: “A Igreja nunca deve julgar como se tivesse nas mãos uma guilhotina. Ao contrário, deve sempre deixar aberta a porta à misericórdia. Isso não significa mudar a doutrina que não pode ser alterada, embora a doutrina não seja uma lagoa estagnada, mas um rio que flui”.
O impressionante consenso que o papa Francisco continua acumulando no interior da Igreja e nos cinco continentes, entre homens e mulheres de qualquer estrato social ou religioso, nível econômico ou cultural, é fruto de gestos simbólicos e decisões corajosas ao longo dos últimos 12 meses. Resulta difícil listar os mais significativos. Lembramos opção de manter os velhos sapatos portenhos em vez de calçar os sapatinhos de seda vermelha previstos nas cerimônias oficiais. Ou sua ausência, em 22 de junho do ano passado, no primeiro concerto de música clássica realizado no Vaticano, em sua homenagem, ao mostrar distanciamento de um evento mundano, por um lado, mas também claro sinal de frieza com a Cúria Romana. Ou sua visita profética à ilha de Lampedusa, quando pela primeira vez denunciou a “globalização da indiferença”, poucas semanas antes da maior tragédia da imigração clandestina no Mediterrâneo. É um nunca mais acabar de gestos plenos de significados. Suas palavras duras contra o luxo e qualquer forma de ostentação, pronunciadas diante de uma plateia de noviços e seminaristas entusiasmados, em julho passado, quando estigmatizou os padres e as freiras que usam carros de último modelo. Ou quando lembrou aos recém-empossados cardeais, em fevereiro, que a Igreja não é uma corte. Ou, ao visitar os mineiros em greve, em Cagliari, na ilha da Sardenha, envergou o capacete e pronunciou palavras de fogo contra o sistema econômico que produz desemprego: “Não há esperança social sem trabalho decente para todos... Neste sistema sem ética, no centro há um ídolo, e o mundo tornou-se idólatra desse deus dinheiro. É o dinheiro que manda!”
Todos esses exemplos não teriam o impacto que exerceram na consciência universal se fossem isolados de decisões concretas e corajosas na reforma estrutural da Igreja Católica. Talvez seja prematuro e simplista considerar ganha a batalha contra conservadorismos e fundamentalismos, mas muitos comentaristas já falam de autêntica revolução. É fato que Francisco, ao agir igual ao líder político deposto a sujar as mãos na administração do poder temporal, decapitou a antiga Cúria Romana em poucos meses, substituindo as figuras mais ambíguas do governo anterior, a começar pelo secretário de Estado, o cardeal Bertone.
Atuando com métodos de governo colegiado (instituiu um Conselho de oito cardeais para assisti-lo constantemente), mas tomando decisões firmes em absoluta solidão, o papa Francisco dedicou-se à reestruturação do banco e das finanças vaticanas, a mais difícil das reformas internas. Depois de longos meses de resistências e polêmicas, incluindo a prisão de alguns réus, criou um ministério da Economia com amplos poderes, e que só responderá a ele, e chamou o cardeal australiano George Pell para chefiá-lo. Com essa decisão, acentuou também a progressiva desitalianização da Cúria vaticana, que agora aparece mais equilibrada e realmente ecumênica.
Líder não só religioso, mas nesse caso também político, Francisco, com seu exemplo, mostra aos poderosos da Terra o caminho da possível reforma virtuosa e do bom governo. Como chefe espiritual, expressa hoje as posições mais críticas e firmes contra o sistema econômico-financeiro que governa o mundo e, como líder político, se dispõe à reforma de seu sistema interno.
Depois de escrever a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, que se torna a principal referência da nova doutrina social cristã, em recente entrevista ao Corriere della Sera, ele define seu pensamento em relação a tais questões: “É verdade que a globalização já salvou muitas pessoas da pobreza, mas ao mesmo tempo condenou muitas outras a morrer de fome, porque com este sistema econômico ela se torna seletiva. A Igreja concebe uma globalização que não se pareça com uma esfera, onde cada ponto é equidistante do centro e que anula as peculiaridades dos povos, mas como um poliedro, com suas diferentes faces, em que cada povo mantém sua própria cultura, língua, religião e identidade. A atual globalização ‘esférica’, econômica e sobretudo financeira produz um pensamento único, um pensamento fraco. No centro, não há a pessoa humana, apenas o dinheiro”.
O papa que quer reformar sua Igreja e levantar as consciências do mundo em decadência moral, política e religiosa, fala as palavras de paz e ternura do santo de Assis, mas se move com os métodos e a audácia de Inácio de Loyola. É aliado de todos os homens de boa vontade, crentes e não crentes, que sonham e lutam por um mundo mais justo.
Notícias de última hora: além dos exercícios espirituais em curso, foi publicado no dia 13 de março um artigo na primeira página doLa Repubblica, assinado simplesmente 'Francisco', cujo título esclarece bem o conteúdo: “Chega de fundamentalismos e pensamento único, a verdade não existe sem diálogo”. Poucas horas mais tarde, um tuíte em account @Pontifex: “Rezem por mim”.

Petrobras: nada a esconder. Muito a enfrentar                
Fernando Brito  31mar2014              
    
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Num gesto de transparência, a Petrobras publicou , nesta segunda-feira,  duas notas nos principais jornais brasileiros, que reproduzo ao final do post.
Nelas, informa que a Comissão Interna de Apuração  constituída  para averiguar as denúncias de supostos pagamentos de suborno a empregados da companhia, envolvendo a empresa SBM Offshore,  não encontrou fatos ou documentos que evidenciem pagamento de propina a empregados da Petrobras. Essa comissão foi, inclusive, recolher na Europa os documentos que estariam em poder do Ministério Público da Holanda, com denúncias contra a empresa. E foi informada pelas autoridades daquele país, embora se tenha feito uma onda imensa no Brasil , de que “não há investigação aberta sobre o caso de propina envolvendo a empresa SBM Offshore e a Petrobras. ”
A segunda informa da abertura de investigação interna sobre a compra da refinaria de Pasadena.
A empresa está cumprindo seu dever de apurar, e ninguém pode achar que quadros de carreira da Petrobras pudessem colocar suas reputações e empregos em jogo para proteger quem quer que seja por razões políticas, ainda mais em um trabalho que será enviado ao Ministério Público, ao TCU e, claro, à CPI que querem instalar sobre o caso.
Falta, agora, cumprir o segundo dever,tão importante quanto o da transparência.
O de assumir a defesa política da empresa, de seu papel na libertação do Brasil, da denúncia das ambições e apetites que cercam a maior empresa do Brasil, a mais capaz e a mais importante para o imenso tesouro do pré-sal.

nota

Resquícios do Golpe de 64

Wallace Simonsen:Um empresário que ninguém quer lembrar                             

Dono da Panair, da TV Excelsior e da Comal, a maior exportadora de café do Brasil, Mario Wallace Simonsen foi expurgado da história empresarial do País. Por quê? 

                                  

Ivan Martins Nº EDIÇÃO: 345 | 14.ABR.2004    

Está enterrado no cemitério de La Batignolle, em Paris, um ilustre empresário brasileiro de quem ninguém gosta de lembrar: Mario Wallace Simonsen. Ele morreu em fevereiro de 1965, aos 56 anos, depois de ter sido, até pouco antes, o homem mais rico e um dos mais influentes do Brasil. Sobrinho do fundador da Fiesp, este Simonsen era dono, simultaneamente, da mais famosa companhia de aviação do País, a Panair, da emissora de televisão de maior sucesso, a Excelsior, e da Comal, a maior empresa de exportação de café do Brasil, num período em que o café respondia por dois terços das exportações nacionais. Naquele Brasil acanhado do início dos anos 60, isso bastaria para credenciá-lo como príncipe, mas havia mais. O elegante e discreto neto de ingleses, cujos olhos azuis viviam escondidos atrás de lentes fotocromáticas, tinha também duas dezenas de outras empresas, entre as quais a Companhia Melhoramentos e o Banco Noroeste, para citar apenas duas. Ele, sua esposa Baby e seus três filhos – Wallace, John e Mary Lou – viviam envoltos numa aura de realeza que não tem equivalente no Brasil moderno. Apesar disso, Simonsen morreu em Orgevall, um vilarejo próximo a Paris, destituído de quase tudo, inclusive da vontade de viver. Entre uma situação e outra ocorreu uma avalanche.  Simonsen perdeu sua esposa para a depressão, foi vítima de uma campanha de difamação como poucas vezes se viu no Brasil e seus negócios foram arruinados por oito meses de investigação escandalosa no Congresso. Acima de tudo, porém, ele foi atingido pelo golpe de Estado de 1964, que instalou no poder pessoas que o tinham na conta de inimigo. O regime foi implacável com ele. “A ditadura militar realmente acabou com o Mario”, avalia, 40 anos depois, seu advogado e amigo Saulo Ramos, ex-ministro da Justiça no governo José Sarney. “Havia a pressão das empresas americanas de café orquestrada por Herbert Levy; havia a Varig que queria abocanhar a Panair e havia os Diários Associados, que tinham ódio da Excelsior. Milico algum agüentaria tanta pressão.” 

Destruído, arruinado, morto e enterrado, Simonsen foi rápida e estranhamente esquecido – embora fosse, por várias medidas, um empreendedor notável, movido por convicções à frente do seu tempo. Criou o primeiro supermercado brasileiro, o 'Sirva-se', e fundou no início dos anos 60 uma empresa chamada Rebratel, que interligou Rio e São Paulo através de um link de microondas inédito na época. Com ele, se transmitiu pela primeira vez ao vivo, do Maracanã, uma partida de futebol entre as seleções paulista e carioca. “A TV Excelsior foi a primeira emissora a ser administrada com visão empresarial”, acrescenta Álvaro Moya, um dos primeiros diretores do conhecido Canal 9 de São Paulo. “Criamos uma grade de programação moderna e em seis meses despontamos em primeiro lugar na audiência. A Globo copiou tudo.” 

No mercado de café, onde se concentrava o grosso da sua fortuna, Simonsen arriscou-se a disputar com as grandes companhias americanas o espaço da distribuição internacional. Não se conformava que o Brasil fosse apenas exportador passivo de grãos e montou uma empresa, a Wasin, para atuar agressivamente nos mercados da Europa e dos EUA. A Wasin tinha escritórios nas principais praças comerciais do planeta e representantes em 53 países, da Colômbia ao Burundi. Café era o seu forte, mas também vendia cachaça, feijão, guaraná, frutas e carne seca. No apogeu, diz seu genro, o conde italiano Carlo de Villarosa, a exportadora de Simonsen chegou a movimentar US$ 200 milhões por ano, uma fortuna imensurável para a época. Não obstante, esse empresário pioneiro foi exumado da memória empresarial brasileira. Talvez porque tenha ficado na contramão do regime militar, talvez porque aos beneficiários da sua ruína interessasse enterrar sua memória, o fato é que Simonsen foi expurgado do passado. Ao contrário de outros empresários nacionalistas destruídos pelo Estado, como Delmiro Gouveia e Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, Simonsen ainda não recebeu o seu quinhão de reconhecimento. Em conversa com DINHEIRO, Mario Amato, o ex-presidente da Fiesp, custou a se lembrar de Simonsen, embora o empresário e sua família fossem uma lenda glamourosa na São Paulo dos anos 1960.

Os poucos que se lembram dele associam o nome ao mar de lama represado por Levy durante a CPI da Comal, convocada para investigar supostas irregularidades na comercialização internacional de café. As acusações do deputado, quando transformadas em denúncia do Ministério Público, foram rechaçadas pelo Supremo Tribunal Federal como totalmente fantasiosas em pleno regime militar. Mas as empresas de Simonsen, àquela altura, já tinham sido fechadas, fracionadas ou vendidas. “A Justiça que tarda mas não falha é coisa que não funciona no mercado de crédito e no mundo dos negócios”, diz Saulo Ramos. “Nesse mundo, depois de um tempo o estrago está feito.” 

A derrocada do império foi rápida e inesperada. Apanhou a filha mais nova da família em meio a um conto de fadas. Loira e linda, Mary Lou era a musa das colunas sociais nos dois lados do Atlântico. Sua festa de debutante foi realizada em Londres, na presença da rainha da Inglaterra. Seu noivado com o conde Villarosa, aos 17 anos, também foi celebrado em Londres, na embaixada do Brasil. Com seu irmão mais velho, Wallinho, dava-se o mesmo. Alto e tímido, dirigia um espetacular Mercedes esportivo pelas ruas de São Paulo, tinha casa com mordomo em Paris e demonstrava pouco apreço por dinheiro. Um amigo lembra que Wallinho era capaz de riscar uma ordem de pagamento com valor em branco, assiná-la e mandar o beneficiário sacar no banco da família – que pagava. O próprio Wallinho contava, anos depois, que nos tempos de fausto mandava tirar os bancos de aviões da Panair para levar ao exterior os cavalos do seu time de pólo. A morte do pai o encontrou despreparado para o duro mundo dos negócios que o cercava. Sua única experiência vinha da TV Excelsior, onde o experimentalismo artístico predominava sobre as técnicas de gestão. “Éramos muito jovens, muito ingênuos e fomos muito enganados”, diz Mary Lou, que tinha 21 anos na manhã em que encontrou o corpo morto do pai, vítima de um enfarte noturno. A mãe havia morrido seis meses antes. “Com a morte do meu pai e todos os problemas que se seguiram, cada um de nós surtou de um jeito”, diz ela.

Um dos mistérios que cerca esta história é o motivo da feroz perseguição que a ditadura moveu contra Simonsen. No encerramento da CPI da Comal, 25 dias depois do golpe, Levy conseguiu que o novo regime cancelasse a licença da empresa para comercialização de café, sem que ela tivesse um único título protestado. Isso arruinou a companhia. Aconteceu o mesmo com a Panair, que teve sua concessão de vôo cassada pelo brigadeiro Eduardo Gomes. Suas rotas e propriedades foram imediatamente apropriadas pela Varig, num açodamento que até hoje espanta quem se debruça sobre o episódio. Depois do golpe, como insistisse em cobrir a repressão do novo regime, a TV Excelsior foi tomada pelos militares e, no Rio de Janeiro, sofreu intervenção do governador Carlos Lacerda, golpista de primeira hora e inimigo declarado de Simonsen. Quando o novo governo, ignorando acordos assinados pela Comal com as autoridades monetárias, concluiu que o Grupo tinha para com o Estado uma dívida de café no valor de US$ 23 milhões, Simonsen ofereceu seu vasto patrimônio como garantia para continuar operando no mercado de grãos. O Banco do Brasil fez as contas e concordou com a proposta, mas, logo em seguida, voltou atrás, sob pressão política. Simonsen ficou com a dívida, sem direito a comercializar café para pagá-la e impedido de afiançar a dívida com seus próprios bens. Desse desencontro numérico, lembra Saulo Ramos, surgiu a execução do BB contra o Grupo. Em 13 de março de 1965 os jornais noticiaram o seqüestro de 30 empresas de Simonsen. Nos 10 anos seguintes, em custosas batalhas legais, os filhos do empresário perderam todas a empresas e propriedades do pai, inclusive um castelo em Alton, na Inglaterra. Do rosário de empresas ficou apenas o banco Noroeste, que Simonsen tivera o cuidado de passar ao irmão Jorge e ao primo Leo Cochrane quando a perseguição política começou. Seus próprios filhos ficaram sem nada.

Se o esforço da ditadura em destruí-lo é evidente, os motivos para isso são menos óbvios. Simonsen não era um homem de esquerda e nem gozava de especial intimidade com Jango Goulart. Como tantos empresários, era governista por necessidade. Em agosto de 1961, quando Jânio renunciou e a direita tentou impedir a posse de seu vice, Simonsen engajou-se ao lado da legalidade, arranjando inimigos entre militares e conspiradores civis. Jango se encontrava na Ásia e disseminou-se a lenda de que ele voltara ao Brasil em um avião da Panair. Não foi assim. DINHEIRO apurou que o dono da Panair estava em Londres quando soube que se tramava contra a posse de Jango. Imediatamente mandou Max Rechulsky, seu mais importante executivo na Europa, interceptar o vice-presidente em sua viagem de retorno da China, para pô-lo a par dos fatos. O encontro deu-se em Zurique. Dali, em vez de seguir para Londres, como era seu plano, Jango voou para Paris com Rechulsky. Hospedou-se no Príncipe de Gales, ao lado do escritório da Wasin. “No nosso escritório ele fez dois telefonemas, um para Santiago Dantas e outro para Juscelino”, contou Rechulsky à DINHEIRO. “A conta de Jango em Paris foi paga pelo nosso escritório. Não me recordo do montante exato, mas foi bastante.”

Anos mais tarde, Wallinho se queixaria de que Jango não soube honrar o favor. Seu pai estava sendo perseguido na CPI da Comal e Wallinho procurou o presidente. “Ele não fez nada. Só me disse que iria falar com o pessoal do PTB”, lamentaria em conversa com o professor Carlos Henrique Novis, da Universidade de Brasília. Novis fez sua tese de mestrado sobre a derrocada do império Simonsen e conversou longamente com Wallinho. O homem que já fora o playboy mais rico e invejado do Brasil, casado com a mulher mais bonita da época – a socialite carioca Regina Rosemburgo, musa do Cinema Novo – morava no final dos anos 80 em um modesto apartamento da rua da Consolação, em São Paulo, no qual tinha vergonha de receber os amigos. Morreu em 2001. Trinta e seis anos antes, no dia da morte de seu pai, os jornais de São Paulo publicaram um anúncio fúnebre, assinado pelos funcionários da TV Excelsior. Ali se desejava paz, depois de meses de desassossego. “Agora os ódios e as perseguições não o podem mais atingir.”